DEBATE PÚBLICO

Intervenções no debate público


CONTRA O MARCO TEMPORAL, PELA MANUTENÇÃO DA VIDA (01.09.2021)

Está em pauta no Supremo Tribunal Federal a apreciação da tese do chamado Marco Temporal. Segundo esta tese, seriam reconhecidas apenas as terras ocupadas por indígenas quando da promulgação da Constituição, em 1988. Ela é defendida pelo atual Governo Federal e pela Bancada Ruralista do Congresso Nacional que, por sua vez, quer aprovar o Projeto de Lei 490/2007, que altera o Estatuto do Índio de 1973 e dificulta sobremaneira a demarcação de terras dos povos originários.

Durante a maior parte da "existência" do Brasil, a perspectiva predominante e colonial foi a de assimilação / aculturação dos indígenas - eles deveriam se integrar à "sociedade branca" ou não-indígena. A Constituição de 88 muda o olhar e introduz o direito originário às terras ocupadas naquele ou em qualquer outro momento da história, respeitando a autodeterminação indígena.

A tese do Marco Temporal não é nova, ela é aventada desde os embates do final dos anos 1980. Em 2009 temos a Ação Cautelar do STF em relação à Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, onde produtores de arroz invadiram o território. Uma das justificativas do STF em favor dos indígenas foi que o povo Macuxi, entre outros, ocupavam a terra desde muito antes da promulgação da Constituição. Tal argumento, que na época beneficiou os povos originários, abriu precedente para colocar 1988 como um Marco Temporal de referência para o reconhecimento de terras indígenas.

Pouco tempo depois tem início um novo capítulo quando da impetração de Ação Cível Originária (ACO) no STF contra o povo Xokleng, na Terra Indígena Ibirama Laklaño, em Santa Catarina, ação esta movida por uma madeireira e pelo próprio governo do estado de SC. O Supremo reconheceu o caso como de Repercussão Geral, ou seja, este julgamento serve de referência jurídica para todos os outros envolvendo terras indígenas no Brasil.

A tese do Marco Temporal esconde o genocídio dos povos originários ao longo dos séculos de colonialismo e de colonialidade, com sucessivos extermínios e expulsões antes e mesmo depois de 1988. Não à toa temos a maior mobilização indígena no Brasil desde a época da Constituição com o acampamento em Brasília. O Marco é um dispositivo da colonialidade do poder para perpetuar no imaginário coletivo e na estrutura social a subalternização dos diversos povos secularmente encaixados no rótulo homogeneizador "indígena".

A cosmologia dos povos originários Americanos, ou melhor, de Abya Yala, apresenta caminhos para a superação da atual crise ambiental e civilizatória planetária. O desperdício da experiência humana imposto pelos séculos de colonialismo e pela manutenção do imaginário colonial em pleno século XXI tem no Marco Temporal um passo importante em direção ao abismo de barbárie no qual estamos imersos no Brasil. Defender os direitos originários não é apenas defender um modo de vida, é lutar pela própria manutenção da vida humana.

RAFAEL ZILIO
Geógrafo, professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA-Santarém). Coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre Espaço, Política e Emancipação Social (NEPES). 

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PL 3729/04 E O POTENCIAL DESPERDÍCIO DA EXPERIÊNCIA HUMANA (15.05.2021)

Na madrugada do último dia 13 de maio foi aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) nº 3729/04, que dispõe sobre o licenciamento ambiental na escala nacional. No momento é aguardada sua apreciação pelo Senado Federal, o que deve ocorrer em poucos dias. Esse PL prevê uma grande flexibilização do licenciamento ambiental, como a dispensa de Estudo de Impacto Ambiental prévio para diversas atividades como obras de saneamento ambiental, duplicação de rodovias e manutenção de portos.

Com relação ao licenciamento ambiental agropecuário, o PL dispensa licença para "atividades agrícolas de interesse" (aí podemos incluir os monocultivos para exportação de commodities) e para pecuária extensiva. Com relação a obras em andamento e outras atividades não regularizadas, o PL prevê assinatura de termos de compromisso, mas não sanções significativas a infratores ou a quem continuar em situação irregular. 

Em Santarém, no oeste do Pará, a aprovação desse PL pode "destravar" o hoje embargado "Porto do Maicá", um complexo portuário a ser implantado sobre o Lago do Maicá, rico e frágil ecossistema situado após o encontro das águas do Tapajós com o Amazonas, onde estão presentes comunidades ribeirinhas e quilombolas, gentes com uma lógica de organização do espaço e de relação com a natureza não-humana muito diferente, antagônica, à lógica desses grandes projetos espaciais. Além disso, a flexibilização do licenciamento ambiental agropecuário legitimará, com segurança jurídica, avanços do agronegócio sobre territórios de povos originários ainda não reconhecidos pelo Estado, como é o caso da autodemarcada Terra Indígena Munduruku Planalto - afinal, tudo indica que os monocultivos da soja e do milho serão prontamente considerados "atividades de interesse".

Em uma quadra da história em que o modelo civilizatório capitalista coloca as vidas humana e não-humana à beira do colapso, e em que o Brasil foi tornado pária ambiental mundial, na escala nacional as repercussões da aprovação do PL 3729/04 tendem a agravar a marginalização e expulsão de seus territórios povos originários, comunidades quilombolas, ribeirinhos, e outros grupos de base comunitária, que nos legam uma importante experiência de relação sociedade-natureza, uma lógica de organização do espaço distinta daquela a ser beneficiada com a flexibilização do licenciamento ambiental. Assim, a aprovação do PL 3729/04 representará o aprofundamento do desperdício da experiência humana no Brasil, experiência(s) que nos apontam caminhos para lidar com a beira do colapso em que nos encontramos enquanto espécie.

RAFAEL ZILIO
Geógrafo, professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA-Santarém). Coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre Espaço, Política e Emancipação Social (NEPES).


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